sábado, 2 de janeiro de 2010

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Pequenas grandes crianças


Marcelo Barroso


Pequenas somente no tamanho. Esse é cada vez mais o panorama que define as crianças desse início de século XXI. Com uma disponibilidade de informações e ferramentes sensivelmente superior ao que tinham as crianças do século passado, os pequenos se desenvolvem cada vez mais cedo, com uma capacidade de discernimento, armazenamento de informações e raciocínio, cada vez maior. O fenômeno é percebido tanto por pais quanto por professores e especialistas e vem dando início à necessidade de que os pais também aprendam a lidar com esse novo mundo.

A reportagem da TRIBUNA DO NORTE conversou com crianças, pais e educadores e percebeu que os meninos e meninas têm cada vez mais voz: tanto no que diz respeito à abertura dos pais quanto na capacidade de se expressar e “participar” do mundo dos adultos de forma saudável. Heitor, Artur, Bernardo e Milena são bons exemplos dessa nova forma de crescer e se desenvolver sem perder a infância.

Crianças com voz e vez na sociedade

Toda criança é um prisioneiro político. A afirmação categórica do filósofo francês Gilles Deleuze data de meados da década de 70 e se refere ao fato de que as crianças, pelo menos até aquela data, não tinham direito à voz e estavam sempre sujeitas à vontade do adulto. Mesmo ainda não sendo senhores e senhoras de si, as crianças do século XXI experimentam uma maior abertura de diálogo, consequência de sua capacidade de raciocínio e compreensão, bem maiores do que de crianças do “século passado”. O fenômeno é perceptível tanto entre especialistas quanto no cotidiano dos pequenos.

Heitor Pereira Paiva tem nove anos e já tem esposa, além de dois filhos. Impossível na vida real, a experiência de casado é viável virtualmente. Trata-se do jogo Habbo Hotel, disponível na internet, e que simula a vida real com várias nuances, como comprar mobília, fazer amigos, ganhar dinheiro, etc. Cada participante cria um personagem e interage entre si. Daí, surgem amizades virtuais, casais virtuais, vidas virtuais. Para desfrutar da diversão, é preciso seguir uma série de passos, alguns até complicados, como cadastro, escolha das características do personagem, etc. O que para muitos adultos seria difícil de manipular e entender, não parece complicar a diversão de Heitor.

Os dois pontos – facilidade para se comunicar e se relacionar com o mundo adulto e o acesso a tecnologias e modos de vida cada vez mais modernos – encontram um ponto comum quando se pensa na amplitude de informações disponíveis para crianças em tempos de internet. “Hoje as crianças já se desenvolvem com muita rapidez de pensamento, reflexo e capacidade de raciocínio. Isso traz a possibilidade de uma nova relação com os pais e com o mundo porque elas passam a entender mais coisas e se expressar com mais facilidade”, opina a psicóloga Ádria Tabosa.

Para conferir ao vivo a facilidade de processamento e compreensão das crianças, a reportagem da TRIBUNA DO NORTE conversou com quatro crianças, entre elas o já citado Heitor. Todas elas irão completar 10 anos em 2010. Todas representam bem o que um dia irá se chamar geração 2000. A conversa com as crianças impressiona, a priori, justamente pela fluidez das palavras: as crianças falam e falam bem.

Artur Mulatinho, por exemplo, filho do jornalista Alexandre Mulatinho, consegue se expressar e se explicar de forma tão “adulta” que chega a impressionar o pai. “Lembro que na minha época existia uma diferença clara entre conversa de adulto e conversa de criança. Hoje, a criança fala sobre tudo”, diz. Não é exagero. A forma como Artur e seu amigo Bernardo, ambos de nove anos, discorrem sobre futebol é uma evidência. O assunto pode parecer infantil, mas o tratamento é de um profissional. “Prefiro o Messi ao Cristiano Ronaldo e ao Kaká. O Messi dribla melhor na maioria das vezes e faz gols em jogos mais decisivos”, diz Artur. Na conversa, as duas crianças são capazes de lembrar a trajetória de jogadores e a escalação de clubes com uma diferença do que era mais comum há 10 anos atrás: a preferência é por times estrangeiros. Artur e Bernardo, por exemplo, são capazes de citar pelo menos três clubes em cada um dos principais países da Europa. Não é todo adulto que sabe.

Por outro lado, a facilidade e a rapidez da criança cria uma necessidade a mais no pai e na mãe. “É preciso que os adultos saibam compreender o contexto em que vivem essas crianças, que muitas vezes é bastante do que o pai e mãe cresceram. Hoje, a criança já sabe falar com mais clareza, já questiona e demanda uma atenção maior”, diz Ádria Tabosa. As diferenças também são visíveis para os pais. “Eu percebo que hoje existe muito mais diálogo do que quando eu era criança. O pai precisa estar atento porque ao mesmo tempo em o acesso às informações é amplo, isso pode ser usado para o bem ou para o mal”, diz Mulatinho.

Computadores fazem parte da rotina

No meio da tarde, Milena Fernandes não tem dúvidas. Se a mãe, Anne Fernandes, não atende o celular, a menina corre para o MSN. “Quando eu tento falar com meu pai e minha mãe e eles não atendem, eu tento pelo MSN. Quase sempre dá certo”, afirma a menina, que também tem nove anos, acrescentando que usa o serviço de mensagens instantâneas para conversar com as amigas do colégio e a família. “Minha mãe não me deixa conversar com estranhos”, diz.

Orkut, MSN, Twitter, informação on line. Tudo isso é aprendido desde cedo. No caso de Artur e Bernardo, os dois “especialistas” em futebol internacional, a lista de contatos no MSN é ampla. Cada um tem cerca de 30 pessoas como amigos virtuais. Ambos também fazem parte da rede social mais famosa do Brasil (não é demais lembrar que o Orkut é permitido apenas para maiores de 18 anos, embora seja uma regra muito pouco respeitada). “Uso mais para conversar com meus amigos e primos. Não tenho amigos somente virtuais. Conheço todos pessoalmente”, explica Artur.

Ao mesmo tempo, se o videogame poderia, até um passado recente, ser considerado uma novidade, hoje os jogos de computador, muitos jogados apenas na internet, ganham cada vez mais espaço. Bernardo e Artur preferem o videogame e o último, inclusive, tem dois deles: um Playstation II e um Nitendo Wii. Contudo, Heitor já embarcou na onda dos jogos on line. O garoto joga vários títulos além de Habbo, onde conversa com amigos e cuida de sua “esposa e filho”. “Gosto de jogar todo tipo de jogo, muitos deles na internet. Gosto de futebol, lego, boxe, jogos de avião e luta. Sou bem eclético”, aponta.

Mais uma vez, a amplitude de ferramentas pede uma atenção especial dos pais, que são obrigados a se preocuparem com os efeitos, positivos ou negativos, que a avalanche de eletrônica pode ocasionar. No caso das ferramentas de comunicação, o perigo é justamente expor os pequenos a contatos indesejáveis, na internet. “Na minha casa não há filtro de conteúdo na internet, mas costumo acompanhar os contatos no MSN e Orkut e as páginas visitadas. É uma coisa que pode ser boa ou ruim e precisa ter alguém para orientar”, diz Alexandre Mulatinho. Cledivânia Pereira, jornalista, e mãe de Heitor, vai mais além. “Não deixo o Heitor ter Orkut, MSN, nada disso. A criança fica suscetível a conhecer gente estranha, mal intencionada. Deixo para mais tarde”, encerra.

Brincadeiras tradicionais não são esquecidas

A forma de se comunicar e de se divertir é um ponto fascinante quando se pensa nas mudanças velozes que o mundo tem passado. Tudo o que diz respeito ao virtual, ao digital e à tecnologia impressiona. Tanto que a primeira idéia que se tem é que essas novas formas de diversão e comunicação, virtuais, podem substituir de uma vez por todas o velho e bom contato direto. Ledo engano. A meninada curte o videogame, mas não abre mão de brincar na rua ou no playground.

Das quatro crianças entrevistadas pela TRIBUNA DO NORTE, todas demonstraram que a quantidade de tempo dedicado ao videogame e ao computador é praticamente igual ao vivido jogando bola, brincando de boneca, polícia e ladrão, entre outras. Algumas brincadeiras de fato ficam no passado – existem apenas na saudade dos pais – mas outras sobrevivem ao passar dos anos.

Milena Fernandes não esconde que adora jogar no computador e no videogame, mas é no quarto repleto de barbies que ela e suas amigas realmente se encantam. A menina de nove anos confessa que já perdeu as contas de quantas bonecas têm – são muitas, de todas as cores, roupas, para todas as “ocasiões”. “É o que mais gosto de brincar, se pudesse brincava todo dia, mas minha mãe não deixa durante a semana porque preciso estudar”, conta. As barbies são tão importantes na vida de Milena que têm direito a um quarto só para elas.

Como Milena mora em um condomínio de casas, o velho costume de brincar na rua permanece vivo no cotidiano da menina. O pé imobilizado por conta de uma torção é a prova viva. “Torci o pé brincando de correr na rua”, conta. Os jogos que Milena e seus amigos brincam são os mesmos que se brincam há dezenas de anos: esconde-esconde, pega-pega (hoje chamado de tica-tica), bandeirinha, etc.

Para os meninos, a “paixão nacional” ainda é campeã. Jogar bola na rua, uma tradicional e saudável mania brasileira, sobrevive como principal fonte de diversão da maioria. Contudo, uma curiosa mudança é bem perceptível: a rejeição de brincadeiras mais violentas.

“Cuzcuz” é uma das mais famosas. Consiste em ir retirando a terra que segura um pedaço de pau em pé até que ele caia. Quando o graveto vai ao chão, o autor da proeza precisa correr para a mancha e até lá vai apanhando do resto da meninada. Artur e Bernardo, quando ouvem o repórter falar na brincadeira, franzem o rosto. Conhecem o jogo, é claro, mas não brincam de jeito nenhum. “Já me explicaram como é, mas nunca joguei”, diz Bernardo. Heitor, da mesma forma, não gosta. “Não gosto de jogo violento, já ouvi falar como é, mas nem eu nem meus amigos gostamos”, encerra.
Fonte: http://tribunadonorte.com.br/noticia/pequenas-grandes-criancas/136539

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